quinta-feira, 19 de junho de 2014

«A cultura ocidental insiste em associar a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo»

A escritora e ensaísta americana Siri Hustvedt desafia-nos a mergulhar no fascinante mundo da complexidade humana, ambígua por natureza, sem medos nem barreiras, incluindo as de género VEJA O VÍDEO 

(texto publicado na VISÃO 1108, de 29 de maio 2014)

«Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates.» Palavras de Harriet Burden, a personagem central de Mundo Ardente (ed. Dom Quixote, 463 págs., €22,90). O sexto romance de Siri Hustvedt conduz os leitores ao universo de uma artista plástica que, menosprezada no meio intelectual nova-iorquino, põe em marcha um plano arrojado: oculta a identidade e esconde-se por detrás de três homens que assinam e expõem o seu trabalho, com o intuito de desmontar preconceitos vigentes.
Deixemos agora o alter ego da autora e passemos à própria, com quem a VISÃO conversou no Bairro Alto Hotel, em Lisboa. As calças de fazenda, os sapatos de salto raso e a ausência de acessórios conferem-lhe um estilo casual chic e realçam o seu porte alto, magro e, aparentemente, frágil. "Não quero que isto soe como banal, mas gosto muito de cá estar", admitiu, no final da entrevista.
Quando vem a Portugal, sente-se em casa (a última vez foi em novembro, para o Lisbon & Estoril Festival, acompanhada pelo marido, o escritor Paul Auster, e a filha, a cantora Sophie Auster): "Os portugueses têm bom coração, não são nervosos, desagradáveis e competitivos." 
Ao longo de 40 minutos e sem papas na língua, contou-nos o que pensa de mundos que conhece bem. Arte. Escrita. Neurociência. Psicanálise. Temas recorrentes nos seus livros, onde coabitam múltiplas vozes, de forma tão fluida quanto ambígua, por ser assim, acrescenta, "que tocamos a profundidade das coisas".

Por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. É este o seu lema?
Quando escrevo, mergulho nas personagens e torno-me nos seus múltiplos eus. Associar um nome masculino a uma criação artística, realça-a. Se a autoria for feminina, denigre-a. Não tenho dúvidas de que isto existe e está longe de acabar. Numa assinatura, as iniciais são uma maneira de esbater o género.

As suas heroínas, ou alter egos, refletem isso?
Escrevi duas vezes como homem. No primeiro romance, Iris (anagrama de Siri) veste-se de homem, é a armadura dela. Em Elegia para um americano, Burton veste-se de mulher e o narrador descreve-o como um homem que está a voltar a si. Os meus livros estão cheios de transformismo (vestir-se como sendo do sexo oposto). Esta é a primeira vez que a história é contada através de vinte vozes.

As heroínas submissas continuam em alta. Basta lembrar o estrondoso sucesso de As Cinquenta Sombras de Grey.
[Altera a expressão e faz uma pausa, antes de responder] O sucesso dessa obra está além da minha compreensão! Neste livro quis criar uma personagem colossal. Um monstro, não no sentido de Frankenstein, antes alguém que não cabe em nenhuma categoria. Harriet (ou Harry) foi antecedida por Margaret Cavendish, a poetisa, encenadora e filósofa naturalista do século XVII, com quem a personagem se identifica, e que foi praticamente rejeitada no seu tempo.

Se vivesse noutro tempo, seria não um monstro mas uma bruxa destinada à fogueira.
No ensaio O Meu Pai/Eu Mesma menciono a relação entre a Bruxa e Joana d'Arc, feita pela antropóloga Mary Douglas. Há um momento [em O Mundo Ardente] em que Harriet diz: "Na vizinhança chamam-me bruxa. Eu aceito."

Lançou a sua obra no atelier de Joana Vasconcelos, o que vê na obra dela?
Gosto particularmente das peças em que usa o croché, muito feminino. Há muita coragem no que ela faz.

Teve um irmão imaginário e fantasiava ser rapaz. Ser mulher ainda é como usar corpete?
[Sorriso enigmático] Surpreende-me como é que a cultura ocidental insiste em associar a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo, na vida pública, doméstica, emocional e pessoal. Não acredito na visão cartesiana, que separa corpo e mente.

Como lidou com isso, durante o longo processo de tratamento da enxaqueca e das convulsões com causa indefinida, após a morte do seu pai?
É um problema crónico que controlo relativamente bem. Aprendi exercícios de relaxamento profundo, para aliviar a dor. As auras são interessantes e não me importo de tê-las. Creio que o envelhecimento e as mudanças hormonais tiveram um efeito positivo nas dores de cabeça. Durante muito tempo eu fui controlada por convulsões, tive uns cinco episódios. A minha neurologista leu A Mulher Trémula ou Uma História dos Meus Nervos (não ficção, 2010), concorda comigo: os diagnósticos foram sempre ambíguos.

Ambiguidade é um termo presente em todas as suas obras. Que valor tem para si?
É o meu chamamento estético e intelectual. Acredito que a complexidade da natureza humana não cabe num único modelo teórico e situa-se em zonas focadas de ambiguidade. O mesmo problema é visto de múltiplas perspetivas e não há uma só resposta, é fascinante.

A psicanálise e a neurociência marcam presença constante no seu trabalho. Porquê?
Sempre me interessei por descobrir como é que as pessoas se tornam, a cada momento, naquilo que são e estes campos lidam com a expressão do Eu.

E consegue dar conta de tudo o que lê e investiga, sem se esgotar?
A memória guarda o que é emocionalmente significativo, por isso não esqueço. Consigo assimilar muita coisa e aprender bastante, porque tenho a sorte de poder passar a maior parte do meu tempo a escrever e a ler em casa. Faço-o durante seis horas e, depois de uma pausa, leio quatro horas à noite. Exercito o corpo quatro vezes por semana com um profissional, vou às compras, faço jardinagem.

"Só vemos a arte quando ela nos altera emocionalmente." Quer explicar?
Não existe uma definição consensual do que é a arte. Ela força o espetador, o leitor ou o ouvinte a reconhecer qualidades maravilhosas na existência mundana. É o caso da pintura de Vermeer, Leitora à Janela: sinto-me transportada. Ele tem a capacidade de tornar uma coisa banal numa realidade transcendente.
A arte é sempre uma dádiva e um diálogo.

Esse diálogo acontece na ficção? Ou fora dela?
Como não há soluções finais para as respostas que procuro, a melhor forma de fazê-lo é na ficção. Posso apresentar ideias, a várias vozes, encenar argumentos que não estão resolvidos. A Mulher Trémula, por exemplo, foi o veículo perfeito para expor a minha obsessão com o fisiológico e o mental. Começa por ser um alienígena e acaba como algo que me pertence, Os Meus Nervos. A jornada faz-se do distanciamento para a proximidade, pela biologia e ritmos do corpo, que se conjugam com a narrativa acerca deles.

Freud estava certo, pelo menos em parte, no seu Projeto [Para uma Psicologia Científica, 1895] da mente?
A teoria da mente que ele não conseguiu validar é hoje confirmada pela neurociência, mas a divisão entre o fisiológico e psicológico não é uma solução satisfatória. Os modelos da psiquiatria biológica têm um problema: não são dinâmicos, os sintomas são tratados com fármacos, sem terem em conta outras abordagens.

Dá aulas de escrita criativa e já o fez com doentes psiquiátricos. O que pode dizer sobre isso?
Fui professora voluntária durante quatro anos e agora, a convite de um amigo, psiquiatra e psicanalista, estou a fazer palestras em Mainz, na Alemanha, sobre o Eu escritor e o doente psiquiátrico. Os pacientes psicóticos têm dificuldades com a narrativa e, sem ter a pretensão de convertê-los em escritores, a ideia é codificar o uso da escrita com fins terapêuticos.

Como vivem dois escritores na mesma casa, com as personagens de ambos?
Temos esta família de seres ficcionais que partilham vidas. Eu e o Paul [Auster] sabemos o que se passa com cada um durante o dia. "Eu escrevi uma página hoje, tive um dia terrível." O outro diz: "Quando é assim, no dia seguinte é melhor." Fazemos isto há décadas e estamos a envelhecer juntos, agora que a nossa filha já tem o apartamento dela.

Mudou alguma coisa com a saída de Sophie?
Não houve propriamente um luto. Ela está bem e eu nunca fui mãe-galinha. A minha mãe também não era. Talvez tenha a ver com as nossas raízes escandinavas, a reserva e o respeito pela privacidade do outro.

O que significa a palavra "casa", para si?
É uma boa pergunta. Continuo a viver em Brooklyn, pelo menos enquanto conseguir subir e descer escadas. É o lugar onde vivo, trabalho e tenciono escrever os romances que tenho em mim.

E não se cansa desse processo?
A única coisa que me cansa e entedia é quando estou no aeroporto à espera das malas, porque não posso ler. Nunca me entedio com as minhas vozes.

Como Fernando Pessoa.
Sim, ele também as tinha, embora um pouco loucas! [Solta uma gargalhada]. Ele e Kierkegaard são exemplos dos múltiplos eus que temos e nos tornam outros.

Para muitos, isso é assustador.
Sim, é verdade, mas também é emocionante! Sem isso, e alguma fluidez interna, raramente se consegue tocar a profundidade das coisas.

BI. ESCRITORA E ENSAÍSTA

Com ascendência norueguesa, nasceu e cresceu nos Estados Unidos e vive em Brooklyn, Nova Iorque, com o escritor Paul Auster: celebram 33 anos de casamento, em junho.
Doutorou-se em Literatura Inglesa, na universidade de Columbia, e experimentou vários ofícios, desde empregada de bar a assistente de investigação médica. 
Decidiu ser escritora aos 13 anos. Aos 59, é uma best seller premiada, na ficção e não ficção, com ensaios, palestras e artigos sobre filosofia, arte e neuropsicanálise.
Esta área levou-a a envolver-se ativamente em grupos de investigação académica e a participar em conferências sobre a consciência, como a realizada há três anos, em Berlim, ao lado do neurocientista António Damásio.