segunda-feira, 5 de maio de 2014

Segredos familiares

Se lhe pedissem, com uma câmara apontada, para contar a historia da sua vida, do principio ao fim, como seria?
Depois de ver o filme da canadiana Sarah Polley, Stories we tell, fiquei a pensar no assunto. A proposta era tentadora. Mais ainda, porque se refere à vida da autora que, aos 28 anos, ficou a saber que o seu pai não era o biológico. 



Desde criança, ela suspeitava que algo estava mal contado na sua família. Ou pouco claro, para não dizer difuso. Alguns anos depois, foi confrontada com os fantasmas que, secretamente, a perseguiam. A mãe morrera quando Sarah tinha 11 anos. A adolescência fora passada com o pai, depois de os irmãos mais velhos já não viverem em casa. Era uma relação invulgar, a deles, mas não sabiam o quanto se intensificaria, pela vida adulta. E como iria transformar, para sempre, o modo de se verem como uma família.  

Dizem que é quando se passa a trintão que certas fichas do passado começam a aparecer, como do nada, e a assombrar os dias. E se muitos se convencem de que há coisas que não devem ser remexidas, outros só conseguem continuar se mergulharem a fundo nas suas heranças familiares e forem ao encontro das suas raízes. Da sua verdade. Mas também da dos outros. 

Que força foi essa, tsunâmica, que a levou a viver para investigar e contar o que nunca fora dito, apenas subentendido e disfarçado? Ela, a única da fratria que «saiu misteriosamente ruiva», sendo esse um tema de família, convocou todos os protagonistas, após um laborioso trabalho de pesquisa pessoal, para que fossem a jogo num projeto arrojado: fazer a sua própria narrativa biográfica, na relação com uma mulher que os unia a todos, a mãe de Sarah. 



Não querendo ser uma «spoiler» (apesar de o filme ser datado de 2012), apenas quero dizer que o visionamento do documentário me deixou uma impressão que me é «familiar»: a realidade supera a ficção. Mesmo depois de tudo ter sido lembrado, contado, encenado e, também, imaginado, as heranças familiares permanecem um enigma da natureza humana, na sua expressão química (as leis da atração, a vida em dna) e alquímica (a singularidade, a interpretação, a emoção, as pontes que o amor tece, com toda a dor e alegria).

Coragem ou compulsão? Sadismo ou exercício de redenção? as perguntas referem-se ao posicionamento dos protagonistas e, em especial, a Polley e seus dois pais, sendo a mãe o vértice do triângulo. A sua morte e «ressurreição», no mundo dos vivos que se inscrevem na sua biografia (pelas vias do coração, da memória e da reconstrução da narrativa, que é caleidoscópica), abriu novos trilhos no universo pessoal e (in)transmissivel dos que a viveram. 

«Se for boa (uma história), queremos partilhá-la». Por mais que custem, os trabalhos de escavação (ou imersão nos segredos de família) valerem - para eles, e para mim - a pena. A capacidade de olhar, sem desviar os olhos, de abrir mão das defesas, expondo-as à luz (à câmara, ao microfone, em face a face com os que nos são íntimos) não é para todos. 

Prefiro interpretar este exercício como um ato de coragem, já que envolveu o risco de o psicodrama familiar acabar por deitá-los, a todos, por terra. Eventualmente, isso também terá acontecido, nas margens do rio (rodagem). Mas terá sido transcendido. 

«Accept the sentence» diz, perto do final, o homem introvertido que nos conduz na leitura da sua história (entrelaçada com todas as outras). Ele gostava de contemplar as moscas solitárias. Contrariamente a elas (que nunca saberão o que significa «o porquê» do que acontece no seu ciclo de vida) fala connosco e, mais importante que tudo, testemunha-se a si mesmo, de uma forma renovada. «I will continue». 

Quantos de nós seriamos capazes de sair inteiros de tamanha odisseia?

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