segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A tua cara não me é estranha



E se um dia se cruzar na rua com alguém que lhe sugere familiaridade, isso não é «amor à primeira vista» nem falta de memória. É um sinal dos tempos
Os sistemas operacionais de internet estão a revolucionar a maneira como nos cruzamos com desconhecidos. Nos últimos cinco anos, começou a ser regra interagir virtualmente com pessoas com quem nunca estivemos face a face. Seja por motivos profissionais ou outros, é hoje comum estabelecer contacto sem qualquer registo físico. As redes sociais e os social media estão a implantar-se enquanto novo contexto de comunicação e torna-se difícil, ou praticamente impossível, memorizar com precisão onde, quando e como foram trocadas impressões com alguém.

en.wikisource.org - drawings for beginners

A falta ou o excesso de pistas de referência – contextuais, não-verbais e sensoriais –, aliada à velocidade de processamento das informações partilhadas, altera radicalmente a forma como se armazenam os conteúdos na memória. Funcionar digitalmente enquanto ser analógico, tem que se lhe diga. Sem «auxiliares de memória», ou «cábulas» virtuais incorporadas no cérebro, a comunicação mediada pelas tecnologias portáteis acaba por ser agregada de forma dispersa, fragmentada e volátil.

O paradigma «multi» - multi usos, multitasking, multiplataforma… - pode ser fascinante e desafiador. As pesquisas efetuadas até agora têm resultados controversos. Ora sugerem uma forte associação entre o uso das redes sociais e o sentimento de pertença - os amigos, mesmo que virtuais, fomentam o que hoje se designa por capital social – ora destacam a emergência de emoções negativas, seja pela inveja desencadeada pelo aparente e constante bem-estar dos protagonistas, «em grande estilo», ou pelo efeito de comparação – e competição - social (cada post ou like evoca a mensagem «o meu é maior que o teu»). 


Seja como for, a torrente de mensagens – umas mais personalizadas que outras – deixa sempre uma marca. O grau em que ela se inscreve nos circuitos neuronais e na memória afectiva de cada um parece decisivo na forma como se associa um rosto aos conteúdos (imagens, texto, voz) que dele se apreendem intuitivamente.


www.looah.com 

Alguém com quem falámos (presencialmente, via mail ou por Instant Messaging), alguém que apenas vimos (num evento social, na imprensa, na TV ou nas redes sociais) ou simplesmente ouvimos (ao telefone, na rádio ou num vídeo partilhado). Alguém que fixámos de forma mais imprecisa ainda, por ser em modo «second screen experience» (uma presença fugaz, embora possa ser marcante, num tablet, ipad ou smartphone, enquanto se está simultaneamente «ligado» num dos registos anteriores).  

Com todas estas dimensões em movimento, não há como saber, em pormenor, se aquela cara é de alguém com quem estivemos, de facto, testemunhámos apenas ou, pura e simplesmente é fruto de um sonho, da nossa imaginação… ou da confusão de circuitos desarrumados que não há maneira de colocar em modo «rewind».  


domingo, 17 de fevereiro de 2013

Entrevista


Mariela Michelena, Psicanalista e escritora

'As mulheres repetem erros vezes sem conta'

O fim de um amor obriga-nos sempre a fazer o luto e a atravessar um deserto, para que possamos seguir em frente, diz a autora de É Possível Esquecer-te, num aviso, sobretudo, ao género feminino

Publicado na revista Visão em 21 de Janeiro de 2013 (excertos)



A incapacidade de alguém de se desligar de um mau relacionamento é iliteracia emocional?
Sim. Porque se ignoram necessidades próprias e se repetem, vezes sem conta, os mesmos erros, sem nunca se encontrar o que se procura. É, sobretudo, o caso das mulheres, para quem a vida afetiva é mais importante, embora haja alguns homens que também passam por isso.

Quem deixa tem o fardo aliviado?
Não é bem assim, porque carrega nos ombros a responsabilidade em relação ao passado e ao futuro. A vantagem é levar o luto meio feito, por ter vivido antes o sentimento de culpa, o sofrimento de mal-estar, numa relação defunta, a decisão de concretizar o funeral.

Mas há formas, menos óbvias, de colocar o ponto final...
O registo "esquece-me tu que eu não consigo" é frequente nos homens, por terem um vocabulário afetivo mais pobre e lhes custar pôr as cartas na mesa, lidar com as discussões. Isto significa trabalho a dobrar para elas, chamar as coisas pelos nomes. "As coisas não estão bem, assim não pode ser", dizem, servindo-lhes, a eles, o pretexto: "Já que é isso que queres, vou-me embora."

Que implicações resultam de uma pessoa desaparecer da vida da outra, sem aviso prévio?
Numa situação difícil, as pessoas dão a cara. Discutem e fazem acusações, na tentativa de entender o que está a passar-se. Evaporar-se sem aviso é bastante cruel e narcisista, porque se fica mais presente do que nunca na vida mental do outro - pela ausência -, forçando-o a colocar na história as palavras jamais ditas por ambos.

O que pode impedir um luto amoroso? 
A negação. "Não pode ser", "dou-te um tempo". Incapaz de aceitar um não como resposta, o abandonado insiste em manter tudo na mesma. A gota nunca transborda do copo. É uma espera inútil, que adia o luto.

Quanto tempo é preciso para mudar padrões doentios de relacionamento?
Não se faz em dois meses. A experiência de psicanalista diz-me que é preciso mais tempo. O inconsciente existe e há muitas coisas que não controlamos. Quem me procura já passou por outros tipos de terapias e não encontrou o que buscava. Refiro-me à compreensão do sofrimento humano, do que nos acontece.

Discorda das terapias rápidas?
Vendem mais a ideia de que todos podemos e conseguimos pensar positivo. É como pintar uma casa de branco e pôr almofadas novas, quando a canalização continua por arranjar. Há muita gente que não se sente identificada com este discurso e que só encontra consolo em algo mais profundo

O que diz a quem a procura, após tudo o que experimentou ter falhado?
É necessário passar pelo túnel para ver a luz. Se o medo for muito, há que pedir a mão a um terapeuta. Este meu livro pretende ser essa mão que acompanha a passagem pelo luto.

Misturar o tom académico e o "registo pop" de autoajuda já lhe trouxe dissabores?
É um erro comum os psicanalistas viverem fechados no seu mundo e falarem numa linguagem cifrada. A Psicanálise descreve a vida. Freud falava do quotidiano e escrevia livros de divulgação. Se fosse vivo, estaria no Facebook e teria um programa de TV.

Ler mais em: Revista Visão

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Histórias que curam


O que fazer quando se recebe um diagnóstico «mau»? Como se lida com os efeitos devastadores de uma doença crónica? Que sentido dar a uma faceta pessoal não assumida?  Toda a experiência é válida, assim se consiga encontrar o fio à meada e tecer os contornos de uma jornada feita na primeira pessoa.

O rumo dado aos eventos parte, em última análise, da sua visão do real. Não raras vezes, é aí que se descobrem forças que se julgavam apenas dos outros, e permitem trilhar caminhos inexplorados, antes, durante e após processos difíceis.


Estudos realizados na universidade americana de Chicago demonstraram que as narrativas pessoais têm um forte potencial terapêutico. Aliadas à medicina, cada vez mais especializada, elas constituem um complemento essencial nos processos de recuperação e da gestão de doenças e, mesmo em fases terminais, têm o potencial de restituir a dignidade e a dimensão humana, subjectiva, que deve estar sempre presente nos processos de natureza física.

Sabia que…

… um «diário de bordo» é uma opção frequentemente usada para superar fases difíceis?

  • Não importa o grau de conhecimento que se tem do assunto, nem sequer as competências de escrita.
  • Registar no papel (ou no tablet) tudo o que se passa dentro e fora do corpo, num período de mudança, tem um poder catártico.
  • Contar o que vai dentro de si, sem julgamento prévio, confere a sensação de controlo, pelo menos em parte, durante um período de incerteza. 
  • Elaborar, ou dar um sentido mais profundo ao que está a passar pode traduzir-se em serenidade. Há quem prefira fazê-lo a solo, mas igualmente numa psicoterapia ou num grupo (presencial ou virtual). 
·      Vergonha, inadequação, medo e desespero são sentimentos que surgem – ou se intensificam – em momentos de sofrimento e de dor. Eles podem ser minimizados pela escrita guiada ou pela partilha de experiências, seja com um profissional de ajuda ou em grupos com problemas similares. Outra das vantagens da partilha é sentir-se acompanhado, ouvido e ter ao alcance a possibilidade de expandir, de forma criativa, a visão de si e das opções que se afiguram pertinentes numa dada etapa de vida.

O uso das narrativas biográficas tem-se revelado muito útil na formação de médicos e outros profissionais de saúde, especialmente os que trabalham em equipa e em ambientes tecnologicamente avançados (em que a componente subjectiva tende a ficar em segundo plano pela especialização e falta de tempo, dificultando a comunicação de diagnósticos, a adesão aos tratamentos e a colaboração do doente no processo clínico). Em Portugal já existem iniciativas deste género, como as conferências realizadas na Universidade de Lisboa (Centro de Estudos Anglísticos).

Viver para contar
O que as histórias pessoais podem fazer por si (e por quem as testemunha)
  • Fornecem informação útil: apreendemos melhor o que ouvimos directamente do que aquilo que lemos num folheto, que é desprovido do elemento emocional
  • Conferem apoio: saber que não se é o único a passar por uma situação complicada revela-se uma ajuda preciosa (num processo de decisão, num tratamento, na reabilitação ou no luto)
  • Estimulam a mudança de atitude: comprovar, in loco, como alguém foi capaz de deixar de fumar, de perder peso, superar uma quimioterapia ou um trauma, é uma fonte motivadora
  • Facilitam decisões: a comunicação entre prestadores de cuidados clínicos e de quem deles precisa estabelece-se numa base mais realista e com um maior grau de confiança
Ver mais em: Revista Máxima


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domingo, 10 de fevereiro de 2013

«Curtir» v.s. «Namorar»




E se alguém com quem teve um encontro íntimo não olhar para si no dia seguinte ou, pior que isso, fazer de conta que nunca se viram, quando se voltarem a cruzar? Se foi esse o acordo explícito que estabeleceram antes, nada de novo. A questão do sexo casual – vantagens e desvantagens – compete a cada um. O estilo de vida escolhido, no que toca à vida privada, é uma decisão individual.

De acordo com um estudo realizado pelo sociólogo Machado Pais, a liberdade sexual é assumida pela maioria dos adolescentes e jovens, mas os dilemas associados a essa realidade estão igualmente na ordem do dia. Estudos realizados nos Estados Unidos, e citados na revista digital The Atlantic, destacam o crescimento do número de estudantes do sexo feminino nas universidades e a generalização da «cultura do engate», leia-se, sexo descomprometido, na população universitária. Porém, a «norma» de saltar de parceiro em parceiro pode não estar a ser tão promissora e satisfatória como aparenta. Especialmente para as raparigas ditas sexualmente emancipadas. Apenas 2% delas se revê neste registo, ao passo que a maioria prefere a velha e tradicional «cultura do namoro». A somar a esta evidência, pesquisas levadas a cabo na universidade da Florida sugerem que a fatura do amor livre se traduz, mais tarde, em perturbações alimentares, mais consumo de substâncias e tendências depressivas, comparativamente a jovens que optam por relações de médio e longo termo.

 A conclusão parece óbvia: entre a ausência de vínculos e o casamento há uma terceira via. A intimidade não oficializada, através de rituais que dispensam a aliança no dedo. Em suma, parece que as mulheres do século XXI têm o que as suas mães e avós nunca sonharam, mas vêem.se presas num equívoco: afinal, que poder é o delas, em matéria de decisão? Se o sexo casual – ou sem rosto – é a regra, qual o lugar para a satisfação das necessidades emocionais? Numa época em que obras como As Cinquenta Sombras de Gray se elevam à categoria de best sellers globais – em que o protagonista rico e dominador mesmeriza a jovem inexperiente e a leva a submeter-se aos seus caprichos, de acordo com um contrato firmado como na época do Marquis de Sade – qual a margem de liberdade para querer mais, além de um vínculo secreto, puramente físico e destituído de afetos?

O poder feminino não vai além da questão do desempenho e da técnica? Este parece ser o tabu da sociedade hiper-realista e digital, em que todos podem ter acesso a todos, mas ninguém parece poder ficar mais próximo de alguém. Não se trata de saber de quem é a culpa ou se o romantismo perdeu glamour. A propósito, os filmes que cativam têm uma boa dose de suspense e o encanto deles reside em esperar para ver até onde levam. Não será também assim, fora da tela? É esse o poder da liberdade: exercê-lo, sem ceder à corrente dominante.